“Ainda hoje eu falo as mesmas coisas e defendo os mesmos ideais há décadas”. Exposta no texto escrito por Ramon Nunes Mello para conceituar o relato das memórias de Ney Matogrosso, a frase do cantor reforça a coerência do pensamento reverberado, na primeira pessoa, no livro Vira-lata de raça.
Ao mesmo tempo, a sentença enfatiza o fato de que, a rigor, a essência desse pensamento já vem sendo explicitada e documentada desde os anos 1970 em entrevistas do artista e, de forma mais profunda, em Um cara meio estranho (1992), subestimado livro em que a autora Denise Pires Vaz tirou a fantasia de Ney em abordagem de caráter quase psicológico.
Com lançamento no Rio de Janeiro (RJ) na noite de 13 de novembro, em sessão de autógrafos na filial da Livraria da Travessa do bairro do Leblon, Vira-lata de raça – Memórias (Editora Tordesilhas) atualiza o discurso de Ney diante da onda conservadora que assola o Brasil de 2018 sem alterar o pensamento do cantor.
O livro é assinado por Ney, mas o fluente texto é produto da organização cuidadosa de Ramon Nunes Mello, escritor e poeta fluminense que conheceu o cantor em 2011 e, de lá para cá, pesquisou e captou os depoimentos do artista que geraram o livro.
Ney Matogrosso (ao centro) com João Ricardo e Gerson Conrad no grupo Secos & Molhados — Foto: Divulgação editora Tordesilhas / Ary Brandi
Vira-lata de raça escapa intencionalmente do formato biográfico. Trata-se, como sublinha o subtítulo, de livro de memórias em que Ney discorre sobre a vida e a própria personalidade ora altiva ora reclusa – especialmente sobre a vida na infância, na adolescência e na fase juvenil pré-fama que se encerrou com a entrada do cantor em 1971 no conjunto Secos & Molhados. Essa personalidade rara o tornou um cara meio estranho, um cantor singular de voz única no universo pop.
Já quem acompanha atentamente os sinais emanados pelo cantor em entrevistas em nada vai se surpreender. “Quem analisar minhas declarações públicas, em diferentes tempos, vai perceber que sempre agi com verdade e coerência em defesa da liberdade. Há tempos, venho batendo na mesma tecla: a liberdade”, enfatiza Ney na página 190.
Ney em cena em 2015 no show ‘Atento aos sinais’, na turnê mais longa da carreira do cantor — Foto: Jamile Alves / G1 AM
Sim, a rigor, Vira-lata de raça é libelo contra toda forma de repressão e opressão. Na infância e adolescência de Ney, a repressão foi simbolizada na figura do pai militar e castrador, Antonio Matogrosso Pereira, de quem o cantor herdou o nome artístico e com quem somente se reconciliou através da arte, quando já era um ídolo nacional.
O pai é personagem central no início da narrativa. A partir da explosão do Secos & Molhados, grupo que entrou em cena em dezembro de 1972 e se transformou na sensação musical de 1973, o opressor pode adquirir tanto a forma dos militares que ditavam as regras do Brasil como a figura difusa do público que às vezes se escandalizava com aquele cantor de voz andrógina e rosto pintado que transitava na tênue fronteira entre o masculino e o feminino, encantando as crianças e descortinando hipocrisias sociais. Um artista de voz ativa, articulada sobretudo como arma política nos sombrios anos 1970.
Com o corpo inicialmente fechado para o amor, Ney lembra como se abriu para o afeto ao conhecer Cazuza (1958 – 1990), com quem viveu tórrido relacionamento durante três meses de 1979. Tempo suficiente para aflorar amor que persistiu por toda a vida, com transas eventuais, mas sem a formalidade e os códigos de convivência que regem as relações afetivas convencionais.
Nesse sentido, o relacionamento mais longo de Ney foi com Marco de Maria, com quem o cantor viveu por 13 anos com a liberdade de ter outros parceiros sexuais. Por isso mesmo, a narrativa poderia ter aprofundado mais a natureza dessa relação tão especial na vida desse artista que reitera no livro a recusa em ser visto como porta-voz da comunidade gay por acreditar que a sexualidade humana extrapola rótulos.
Capa do livro ‘Vira-lata de raça – Memórias’ — Foto: Daryan Dornelles
Valorizado por reproduzir fotos inéditas do cantor, textos sobre o artista publicados na imprensa por críticos musicais e discografia completa (com capas de discos e nomes de músicas e compositores), o livro Vira-lata de raça mostra Ney atento aos sinais preocupantes dos tempos de hoje.
*G1