Não será nos palcos onde reina. Não terá o calor da multidão. Mas ao menos ele ainda preserva vigorosamente o principal: sua voz. Ney Matogrosso completa 80 anos neste domingo (1), lançando o EP Nu com a Minha Música. O disco reúne quatro faixas que integrarão o disco homônimo previsto para novembro.
Nascido em Bela Vista (MS), Ney de Souza Pereira começou a entrar para a história com a banda Secos & Molhados, no início dos anos 1970. Na metade da mesma década, seguiu em exitosa carreira solo. Performático, exótico e magnetizante, além da voz cujo timbre vocal remete ao feminino, desafiou o senso comum e conquistou plateias com interpretações poderosas ao longo dos anos. Consolidou-se como o showman da MPB.
Desde o início da carreira, Ney quebrou paradigmas sobre questões de gênero e sexualidade na música brasileira. Isso em plena ditadura. Contudo, já foi cobrado por mais protagonismo no movimento LGBT+, ao que ele argumenta: “Eles dizem que não carrego a bandeira. A bandeira sou eu. Não preciso carregar uma”. Para o artista, o Brasil atual “emburacou” na caretice, e a situação atual é mais esquizofrênica do que na ditadura:
— Tem essa coisa de dois lados. Eu acho isso empobrecedor. Fica polarizado, um com ódio do outro. Acho que essa questão de ser movido por ódio só atrasa. É um atraso para nós mesmos, para a democracia, para tudo, até para nós como seres humanos — pondera.
Para seu novo disco, Ney pincelou 12 canções afetivas para regravar com uma nova abordagem. São músicas que ele conheceu na voz de outros intérpretes e que o atingiram de imediato. Quando começou a formar o repertório, percebeu que o romantismo se acentuava. Porém, abre para outras possibilidades — como a nostalgia.
A faixa que abre o EP e dá título ao trabalho, Nu com a Minha Música, é uma composição de Caetano Veloso, presente no disco Outras Palavras (1981).
— Representa, para mim, uma época em que todos os artistas brasileiros faziam essa turnê pelo interior de São Paulo, que duravam um ou dois meses. Todo mundo fazia. Essa música me remetia a isso. Me leva a uma época em que todos éramos felizes e sabíamos — explica.
O EP segue com Mi Unicornio Azul, do cantor e ativista cubano Silvio Rodriguez. Ney assistiu ao artista tocar essa música em um show no Canecão, no Rio, e decidiu que um dia cantaria ela. Segundo Rodriguez, a canção homenageia seu amigo Roque Dalton, poeta e revolucionário salvadorenho.
A terceira faixa é a dançante Se Não For Amor Eu Cegue, composição de Lula Queiroga e Lenine — que também integrou o disco Chão (2011). Ney eleva o astral da música em sua versão. Ele conta que descobriu a música em Angra dos Reis, na casa do empresário José Maurício Machline. Em algum momento da tarde, o shuffle da playlist que tocava no ambiente os levou à canção. O artista decidiu gravá-la na hora.
Por fim, Gita — letra de Paulo Coelho e sucesso na voz de Raul Seixas — encerra o EP mantendo o clima épico da versão original. É a quarta vez que Ney regrava o roqueiro baiano (nas outras ocasiões, cantou Metamorfose Ambulante, A Maçã e Mata Virgem). Aliás, ele adianta que pretende cantar mais músicas de Raul no futuro.
O disco completo deve contar também com faixas como Sua Estupidez, Por Quase um Segundo, Espumas ao Vento, Estranha Toada e Noturno — esta é uma composição de Vitor Ramil, que aparece no álbum Longes (2004). Para a nova versão, Ramil acrescentou uma segunda parte para a música a pedido de Ney.
Biografia, cinebiografia e pandemia
No dia 23 de julho, foi lançado o livro Ney Matogrosso – A Biografia (Companhia das Letras), de Julio Maria. Não é o primeiro registro sobre o cantor: já haviam saído a biografia Um Cara Meio Estranho (1992), de Denise Pires Vaz, e o livro de memórias Vira-Lata de Raça (2018). O cantor admite que torceu o nariz quando o jornalista manifestou interesse em contar sua história. Porém, consentiu. E impôs uma condição: cuidado para não faltar com a verdade.
— Pedi ao Julio que fizesse uma averiguação de tudo o que fosse dito ao meu respeito, porque na primeira biografia tinha muita mentira. Só pedi atenção a isso. Tudo que ele descobrisse sobre mim e fosse verdade poderia pôr — relata.
Ney leu um dos manuscritos da biografia e atualmente está lendo o livro lançado. O artista conta que ficou sabendo pela obra ter sido alvo de preconceito por vários setores da sociedade, o que ele desconhecia até então.
Além dos livros, Ney também ganhará uma cinebiografia intitulada Homem com H, que será dirigida por Esmir Filho (Verlust e Os Famosos e Os Duendes da Morte). O filme está em pré-produção e deve ser rodado em 2022. O artista prestará assessoria nas filmagens, o que ele aceitou fazer “para não ter erro”.
Assim que possível, seu plano é subir ao palco novamente com o espetáculo Bloco na Rua, com o qual ele veio a Porto Alegre em 2019. A turnê foi interrompida por conta da pandemia, mas Ney terá que retomá-la porque já teve shows vendidos, tendo recebido antecipadamente uma parte do cachê. Sobre o período longe dos palcos, ele lamenta e reflete sobre a atual situação da indústria musical:
— É de onde tiro o meu sustento (shows), não é mais de disco. Não funciona mais como antigamente. Tudo mudou. Se você visse o que recebo de direitos dessas formas agora de tocar música, como streaming, é ridículo. Fico com vergonha. Quer dizer, eles deveriam sentir vergonha de me pagar isso.
Na pandemia, tem saído minimamente — apenas para extremas necessidades, sempre de máscara. Confessa que ficou ansioso no início.
— Sempre fui uma pessoa caseira. Gosto de ficar sozinho. Não sofro de solidão. Mas no momento em que me vi obrigado a ficar isolado, senti-me como se estivesse em uma prisão dentro do meu corpo, algo que nunca tinha sentido — descreve.
Sobre fazer 80 anos, Ney afirma que o mais marcante está sendo ainda poder cantar:
— Isso é a coisa que mais me toca. Tinha acreditado nas pessoas que me diziam que aos 40 anos eu não teria mais voz porque a estava forçando nos Secos & Molhados. Então, chegar aos 80 no comando da minha voz me deixa extremamente feliz.
*GauchaZH
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