Aos 80 anos, Martinho da Vila toma partido e manda recado explícito em cinco das 12 músicas de Bandeira da fé, álbum que apresenta dez meses após Alô Vila Isabeeeel!!!, disco de aura carnavalesca editado pelo artista em janeiro deste ano de 2018.
O próprio resgate do samba-título Bandeira da fé simboliza o tom político de disco que não foge à luta, como simboliza a ilustração criada por Elifas Andreato para a capa do álbum. Bandeira da fé é parceria de Martinho com Zé Katimba lançada em 1983 por Luiz Carlos da Vila (1949 – 2008), regravada em 1984 por Agepê (1942 – 1995) e até então nunca registrada em disco pelo próprio Martinho.
Capa da edição em CD do álbum ‘Bandeira da fé’, de Martinho da Vila — Foto: Ilustração de Elifas Andreato
O compositor hasteia o samba Bandeira da fé na hora certa para propagar resistência e defender valores humanistas. Ao discorrer sobre a natureza feminina, Martinho dá voz à apresentadora e jornalista da TV Globo, Glória Maria, convidada a recitar os versos de Ser mulher(Martinho da Vila), poesia falada que se ajusta à ideologia de disco que cativa mais pela palavras do que pela música. Tanto que o canto de Martinho muitas vezes adquire a forma do discurso falado.
Para protestar contra o racismo e exaltar o orgulho negro, o cantor convoca Rappin’ Hood para misturar samba com rap (com direito a som de guitarra roqueira ao fim) em O sonho continua (Martinho da Vila, Rappin’ Hood e Jujuh Ferreira).
Martinho da Vila apresenta sete músicas inéditas ao longo das 12 faixas do álbum ‘Bandeira da fé’ — Foto: Reprodução / Página de Martinho da Vila no Facebook
Completa o bloco explicitamente político Não digo amém, samba em que Martinho inventaria em tom crítico e desiludido os erros da musa pátria amada, o Brasil. Contudo, o conceito do álbum Bandeira da fé é mais elástico, abrangendo também reflexões pessoais do artista sobre a própria vida.
Lembrança do álbum Sentimentos (1981), Depois não sei (Martinho da Vila, 1981) refaz a rota da existência humana do nascimento à morte, vislumbrando a finitude sem drama, enquanto A tal brisa da manhã(Martinho da Vila e Luiz Carlos da Vila, 2013) – destaque de repertório de inspiração por vezes rarefeita – celebra com gratidão o percurso e as conquistas da vida. Os contrapontos de Mart’nália ao fim da faixa temperam a reflexão com humor. “O trabalho, se não enriquece, enobrece”, argumenta Martinho. “Mas cansa, né?”, pondera a filha de Martinho com o habitual ar maroto.
É evocando o passo do frevo que Martinho evolui ao lado do filho Tunico da Vila com o samba-enredo Baixou na avenida (Martinho da Vila), forma final da composição que rascunhara para desfile da escola de samba, Unidos de Vila Isabel, que lhe deu o sobrenome artístico. Baixou na avenida exalta Pernambuco e, por extensão, um Nordeste que se rebela contra toda forma de opressão.
Martinho da Vila — Foto: Divulgação / Leo Aversa
Em âmbito estritamente pessoal, o delicioso samba calangueado Ò que saudade (Martinho da Vila) é reminiscência de amor e vivência juvenis na cidade fluminense de Duas Barras (RJ), terra natal do sambista que atualmente reside na Barra da Tijuca, musa de Minha nova namorada(Martinho da Vila), saudada em versos recitados quase em clima de seresta em faixa dispensável.
Abrindo o disco, com direito a um breque que saúda Moreira da Silva (1902 – 2000), o samba O rei dos carnavais (Martinho da Vila) sugere perfil autobiográfico de Martinho, mas quem o sambista perfila na primeira pessoa é o próprio samba, como fica claro ao fim da faixa com a citação de A voz do morro (Zé Kétti, 1955).