É raridade encontrar uma entrevista de Marília Mendonça sem reclamações sobre a fama. Quando se tornou a dona das músicas mais ouvidas no Brasil, em 2016, a cantora goiana disse que ser celebridade era como carregar uma cruz.
Mas os fofoqueiros agora foram longe demais. Marília pensa em nunca mais lançar o que compõe. Logo antes do evento de lançamento de sua série documental “Todos os Cantos”, que estreia no Globoplay nesta sexta-feira (13), ela diz ao G1 que não aguenta mais.
“Compor menos tem muito a ver com exposição. Eu nunca falei sobre esse medo, mas ele existe muito. Às vezes, eu escrevo alguma história que é muito distante, que eu li em um livro.”
Hoje, ela se divide entre páginas sobre gravidez e as de “A individualidade numa época de incertezas”, do filósofo polonês Zygmunt Bauman.
“Cara, já pensou se eu lanço uma música que é uma composição minha, e de repente está escrito amante? E a galera fala: ‘Olhaaa, Marília está sendo amante de alguém’.”
G1 Ouviu – Marília Mendonça – ‘Supera’
Marília é refém da personagem de sofredora que criou. E, atualmente, sua vida pessoal tem quase nada a ver com ela. Grávida de quatro meses e “namorando por um tempo” o cantor Murilo Huff, decidiu parar de cantar versos próprios.
“De quem é a culpa?”, a última música que saiu do gravador de seu celular para sua carreira solo, é de janeiro de 2017. E é isso que muito fã quer saber: de quem é a culpa por não compor mais?
“Foi criada toda essa coisa em cima da Marília Mendonça, que as músicas são sobre a vida dela e tudo isso. Eu tenho muito medo”, confessa.
“Eu continuo compondo muito, se eu te mostrar meu gravador tem muita coisa, mas eu não tenho a intenção de lançar. Me expor falando é uma coisa, me expor cantando é outra totalmente diferente.”
Todos os cantos, menos o dela
Assista ao trailer da série’ ‘Marília Mendonça – Todos os Cantos’
Todas as 12 músicas do álbum “Todos os Cantos” são de outros compositores. A autora de “Amante não tem lar”, “Traição não tem perdão” e “Infiel”, o marco zero do feminejo, não quer mesmo se expor.
Então, será que faz sentido um documentário com os bastidores do projeto que quer levar shows surpresa para todas as capitais brasileiras?
“Eu fiquei super à vontade, né? A gente incluiu as partes punks. Eu queria mostrar o que deu errado também, a parte que eu choro, que me dói, que está difícil.”
Marília destaca uma cena em que ela e equipe foram distribuir os 150 panfletos de divulgação do show pelas ruas de São Luís:
“Estava muito calor, e eu estava muito cansada. Tem uma cena em que eu estou muito mal na van. Mas quando eu chego no hotel, sou eu e Deus. Ali é onde eu desabo de verdade. Mas na maioria das vezes eu já chego dormindo”.
Desde que o giro pelo Brasil começou, em agosto de 2018, em Belém, o cachê aumentou, ela parou de fumar e emagreceu 20 quilos. Quer ter seu filho Léo durante o projeto. Vai dar uma pausa de três meses, antes de cantar nas dez capitais que faltam.
Desconstruindo Marília
Marília Mendonça no lançamento do documentário ‘Todos os cantos’ — Foto: Divulgação/Globoplay
“A Marília sofredora sempre foi um personagem” é o mantra da cantora. Mas como a desconstrução dessa sofrência está sendo recebida pelos fãs? Todo mundo vai sofrer, menos minha sofredora favorita, agora em um relacionamento estável?
“Cara, na verdade foi bem difícil. Eu tive que explicar um pouco pra galera. Eu senti um ciúme da galera, sabe? ‘A Marília não pode ser feliz, ela tem que ser nossa, ela está do lado da sofrência’. Isso é inadmissível, mas rolou muito isso.”
“Mas eu fico muito feliz, porque esse personagem foi criado tão bem feito, sabe? Às vezes, eu estava lançando uma música sofrida, mas eu estava de boa, coraçãozinho de boa.”
Mesmo que as novas músicas não sejam dela, Marília diz cantar como se fossem. “São histórias que eu vejo acontecer. Eu lido com muitas coisas, lido com pessoas, eu leio muito, estou sempre nas redes sociais, então eu canto pras pessoas.”
“Cantar pra mim eu canto lá dentro do banheiro. Aí, eu vou lá e escuto Silva… Mas pra galera eu estou cantando o meu trabalho, a Marília Mendonça é do público, e canto o que a galera quer escutar. E vai ser sempre assim.”
Sertanejo líquido
Marília Mendonça e Anitta se encontram nos bastidores do “Criança Esperança” — Foto: Globo/João Miguel Júnior
Marília tenta se encontrar em uma era em que os artistas parecem se expor mais. Hoje, é mais natural ouvir popstars cantando sobre saúde mental e outros perrengues na vida. Os artistas estão perdendo o medo de serem pessoas comuns?
“Inclusive eu estou lendo um livro, e li um trecho que fala sobre isso. As celebridades substituíram os santos na cabeça da galera”, diz, citando Bauman.
“Porque santos são uma coisa… Eu nunca vou chegar naquilo ali, né? ‘E olha, ele tem tudo o que eu queria ter na minha vida, a vida perfeita, mas ele sofre como eu, ele passa por tudo como eu’.”
Bauman, morto em 2017, discutia como as relações da sociedade atual tendem a ser menos frequentes e duradouras. O conceito da “modernidade líquida” valia para campos variados, como relacionamentos, economia e política. Provavelmente, também para o sertanejo.
“Então, isso na verdade tem tornado, na minha cabeça, cada vez mais a celebridade tão celebridade, sabe? Porque a pessoa coloca outra pessoa em um pedestal ali e fala: ‘Olha, eu vou te adorar para o resto da vida, porque você sofre como eu, você come como eu, pensa como eu’.”
“Existem assuntos importantes que eu posso tratar também, né? Essa coisa mitificada do artista – eu acho que era muito difícil até para ter uma convivência. No projeto, eu vou panfletar todas as vezes, porque eu precisava de contato humano. Tento mostrar que eu sou uma pessoa como eles, cada vez mais.”
“Então, tem essa parte de me expor falando que estou doente ou estou inchada da gravidez, estou achando o meu nariz gigante, estou me achando horrível, sabe? Eu gosto muito de falar disso, até para entenderem que existem problemas e que nós somos seres humanos.”
Marília fala o que pensa. Mas, por enquanto, não quer cantar o que pensa.
*G1