Existe uma frase que Luiz Gonzaga, o grande Rei do Baião, dizia sobre a herança musical paterna: “De pai pra filho desde 1912”. Esta era a data que ele nasceu, e Gonzaguinha foi outro dos grandes da MPB, no seu tempo. A partir do show da turnê “Ofertório”, realizado nesta quarta-feira, no Auditório Araújo Vianna, podemos adiantar em 30 anos a frase Gonzagueana: “De pai pra filho desde 1942”, pois o que se viu durante duas horas e 30 músicas de Caetano Veloso e os filhos Moreno, Zeca e Tom foi a história da música popular brasileira, do tropicalismo, da musicalidade e inventividade tamanho família se materializando cristalina como “Cajuína”.

O show que foi apresentado pela primeira vez em Porto Alegre no mesmo 19 de dezembro do ano passado, virou disco/DVD em maio deste ano e rendeu a turnê que foi vista novamente por 3,5 mil pessoas. E para quem já leu “Verdade Tropical” ou “O Mundo não é Chato” ou algo da fortuna crítica sobre Caetano é sempre bom conhecer um pouco mais sobre os filhos e a relação deles na hora da composição das músicas. Gilberto Gil já se apresentou com os filhos, Baby e Pepeu já tocaram com Pedro Baby, etc e etc.

A abertura da noite histórica é com “Alegria, Alegria”. Nada melhor do que caminhar contra o vento, sem lenço e sem documento, nada no bolso ou nas mãos (como diria Sartre) na canção composta por Caetano em 1967, a sua marchinha apresentada no Festival da Record daquele ano, que dialogava com “A Banda”, de Chico Buarque, e tropicalizava a nossa música. Na sequência, o quarteto Veloso engata “O Seu Amor”, música de Gil, esta beleza de apologia à liberdade no amor e também na vida, na ideologia, no país, eternizada pelos Doces Bárbaros nos anos 1970.

A primeira fala de Caetano sobre os filhos vem em “Boas Vindas”, escrita quando nasceu Zeca em 1992 e logo depois o próprio Zeca ao piano e com aquele falsete que é próprio da família canta “Todo Homem”, de sua autoria: “O sol, manhã de flor e sal, areia no batom, farol, saudades no varal… Todo homem precisa de uma mãe…”. Paula Lavigne, mãe de Zeca e Tom presente na canção, de forma direta e indireta. Mas Dedé, mãe de Moreno, também está presente. Após “Genipapo Absoluto”, Moreno assume a autoria e a ponta dos vocais com sua “Um Passo à Frente”: “Pega na barra da saia, tomara que caia, um passo à frente e um passo atrás”, aquele samba de roda violado que cola no ouvido e no coração e nas palmas de todo o público, com direito a solo de violão de Tom.

Voltemos para as músicas mais conhecidas de Caetano, interpretadas pelo quarteto. “A Tua Presença Morena” e “Trem das Cores” até chegar ao moderníssimo funk “Alexandrino”, com a contagem métrica de 1 a 12, poeticamente funk, e o nome completo do poeta: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, com direito a passinho em frente ao palco de Tom. Depois da música, Tom se perdeu no instrumento, foi para o violão, enquanto o seu lugar era o baixo na joia rara de “Oração ao Tempo”: “És um senhor tão bonito/ Quanto a cara do meu filho/ Tempo, Tempo, Tempo, Tempo/ Vou te fazer um pedido/ Tempo, Tempo, Tempo, Tempo”. Nesta música, os celulares gravando, presenças tão incômodas em shows, acabaram sendo levantados para eternizar na nuvem da vida o momento no qual o tempo é realmente propício.

A fala sobre religiosidade aparece na explicação sobre a canção “Ofertório”, composta para a missa de 90 anos da matriarca dos Veloso, a dona Canô. Caetano Veloso diz que é ateu ou irreligioso, Zeca e Tom são cristãos e Moreno é das religiões de matriz africana e também das orientais, mas que um dia Moreno apresentou argumentos que quase o convenceram da existência de Deus. Caetano não falou quais argumentos. Alguma voz forte feminina da plateia gritou: “Fala”. Ele respondeu que o show iria se estender muito: “Tudo que se foi mim, mas não perdi/ Senhor da vida/ Os que já chorei e os que ainda estão por vir/ Profeto a ti”, evocou a lembrança da matriarca falecida em 25 de dezembro de 2012, aos 105 anos.

E por falar em família, a música “Reconvexo” relembra uma de suas intérpretes, a mana Maria Bethânia (que cantou esta canção no fim de novembro no mesmo Araújo, em apresentação junto com Zeca Pagodinho). A música foi escrita no final dos anos 1980 para ela e exalta as coisas da Bahia e também do mundo (Roma, Amazônia). Quem não ouviu esta música no desenrolar da vida. Com os violões e baixo do trio e Moreno ritmando com talher e prato a canção, o público se empolga com palmas e se levanta para entoar: “Quem não rezou a novena de Dona Canô/ Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor/ Quem não amou a elegância sutil de Bobô/ Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo”.

Zeca volta à tona cantando “Você me Deu”, parceria com o pai, que já foi cantada por Gal Costa, outra parceira tropicalista e bárbara, que estará em Porto Alegre, em março. Antes de “O Leãozinho”, Moreno Veloso explica que não sabia tocar esta música e que teve que aprender. A música foi composta em 1977, inspirada por Dadi Carvalho, de A Cor do Som e Novos Baianos, mas parecia ter sido feito para Moreno, pois tem uma pegada infantil. Moreno canta e o público acaba mimando os pimpolhos de Caetano, com aquele “aaaaaahhhhh”.

O show avança com “Gente” (Dedé, mãe de Moreno aparece nesta música da vida, doce mistério), “Ela e Eu”, “Não me Arrependo” até “Um Canto de Afoxé para o Bloco do Ilê”, composta em parceria de Caetano e Moreno, quando o menino tinha 9 anos. Em dado momento, sem combinar com o pai, que fica quieto e perplexo, Moreno puxa o coro de “Lula Livre”, a maioria da plateia vai no embalo, alguns vaiam. Os shows acabam sendo políticos, mais cedo ou mais tarde, não adianta espernear. Moreno também dança à frente do palco e Caetano também. Zeca tenta, mas não é do ramo. Por isso uma força levou a eles a cantar “Força Estranha” e o público a se envolver cantando junto. De Moreno, também os quatro executam a música de uma única frase, porém definitiva: “How beautiful could a being be” (quão belo poderia um ser ser).

Depois de agradecer ao público, a família Veloso volta para aquele bis que mexe com os corações e com os corpos da plateia, tanto que parte do público abandona suas cadeiras e vai para a frente do palco sentir mais de perto a energia tamanho família dos Velosos. Assim, aparecem apoteoticamente as músicas “Você é Linda”, “Deusa do Amor” e “Tá Escrito”, com aqueles dizeres mágicos: “Mete o pé e vai na fé”, até aquela música que vem encerrando shows de Caetano há algum tempo: “A Luz de Tieta”: “Eta, Eta, Eta, Eta/ É a lua, é o sol é a luz de Tieta/ Eta, Eta”.

Quer final mais apoteótico, com todo mundo se balançando e também um pouco contestatório, pois esta música foi muito contestada pela crítica em 1996, quando foi lançada para a trilha do filme de Cacá Diegues, mas após duas décadas é uma das músicas mais festejadas de Caetano Veloso. Um show para guardar na memória e para torcer que a família siga compondo e tocando junto ad eternum ou enquanto eles viverem e conviverem.

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